16 de setembro de 2024
O famoso bordão de Chicó transformou o personagem de Ariano Suassuna em um dos grandes pensadores do teatro e cinema brasileiro. Em uma espécie de pensamento cartesiano, o sujeito de fala mansa, morador da simpática Taperoá, mostra-se um legítimo contador de causos, usando da imaginação invejável para narrar histórias engraçadas e mirabolantes. Histórias sem pé nem cabeça que de tão inverossímil só poderiam ser concluídas com o inesquecível bordão.
Chicó tem o dom de transformar fatos simples em histórias extraordinárias, capazes de agradar até o mais crítico dos homens. Ninguém acredita em um papagaio que viveu em um seminário e conhece a Bíblia de cor, mas todos se encantam com a história da ave que no fim se converte ao Protestantismo e passa a viver numa Igreja Batista. Esse encanto faz parte da essência humana, mesmo que o causo não tenha qualquer verossimilhança, como os contados por Chicó.
Ao narrar histórias em “O Auto da Compadecida”, o personagem está realizando uma das mais antigas atividades humanas. Contadas desde o início da linguagem, as histórias se transformaram com o passar dos séculos e se manifestaram em diferentes expressões artísticas. Das pinturas rupestres ao grafite, das tragédias gregas aos filmes em plataformas de streaming, elas sempre se fizeram presentes, em todos os tipos de sociedade, e são essenciais para a construção cultural de um povo.
A arte de contar histórias é popular e mesmo sem perceber nos pegamos contando ou ouvindo histórias, nas mais diferentes situações do cotidiano. Não é incomum encontrar fofoqueiros contando sobre a vida alheia ou amigos se reunindo para narrar um acontecido. Às vezes nós somos essas pessoas e estar nessa situação reforça o encanto que temos por uma boa história, seja transmitida pela oralidade ou registrada em livros, em redes sociais e nas páginas de um jornal impresso.
Não importa como uma história é contada. O importante é que ela seja contada. Um fato, ficcional ou não, que permanece escondido nos labirintos do pensamento é uma história perdida. Se desde o surgimento da linguagem as contações de histórias foram usadas para transmitir ensinamentos, proporcionar entretenimento e garantir saberes populares, por que deveríamos guardá-las para nós mesmos? Por que privar alguém de algo tão bom?
Todos nós temos um pouco de Chicó. Às vezes inventamos algumas coisas ou exageramos nos detalhes de outras, mas nessa arte apaixonante tudo é permitido. Vivendo em uma cidade como a nossa é ainda mais natural, afinal existem coisas que só acontecem aqui.
O pinhalense está acostumado com os causos que não aconteceriam em nenhum outro lugar do mundo. O pinhalense sabe olhar para o passado e contar para as atuais e futuras gerações sobre a chegada dos imigrantes. O pinhalense sabe lembrar com saudosismo tempos que não voltam mais ou descrever com detalhes os bailes e matinês que abalavam a cidade todo fim de semana (e se sei disso é de tanto ouvir falar).
O pinhalense sabe contar histórias como ninguém.
Escrever sobre essas histórias sempre foi muito prazeroso. Não é preciso muito para me sentir satisfeito com isso. Basta ouvir o que os outros tem a me contar e depois me sentar em frente a um computador, abrir aspas e deixar a imaginação fluir. E se perguntam o sentido do que estou contando, recorro ao mais atrapalhado pensador brasileiro:
“Não sei, só sei que foi assim”.
Espírito Santo do Pinhal, 15 de março 2020.